terça-feira, agosto 04, 2009

No jogo da imagem

O Imagem Pensamento apresentou a mostra no “No jogo da imagem”, curadoria de João Dumans que investigou algumas das possíveis relações entre o vídeo e a arte contemporânea. Para o curador, em conversa com o público após a mostra, a idéia do recorte não tem nenhuma pretensão de ser um recorte geral. “A curadoria não busca reivindicar uma especificidade dessa relação, mas tenta ser um acúmulo de contrastes”, disse Dumans. “A idéia é tentar entender se há alguma diferença nos vídeos que são realizados no domínio das artes plásticas”. Para Dumas, os vídeos da mostra são realizados a partir de princípios narrativos simples que se desenvolvem na duração da imagem. “O gesto importante desses artistas é fazer com que a imagem se interesse por essas idéias simples”. Para Dumans, o vídeo traz uma facilidade, que é a urgência de trabalhar com aquilo que se tem às mãos. “O vídeo permite uma urgência que é lidar com essa dificuldade imposta pelos jogos do mundo”.

De acordo com Dumans, é possível apontar uma diferença principal, que é referente aos circuitos de exibição. Para ele, poucos festivais, como o Videobrasil, se interessam pelos vídeos produzidos por artistas plásticos. “Talvez seja uma exigência dos próprios trabalhos, que precisam ser articulados com outros trabalhos dos artistas para ganhar coerência”, apontou. “Para analisar esses vídeos não se deve abandonar o contexto onde elas foram produzidas, mas também é preciso imaginar que elas têm uma autonomia”. Uma outra diferença que os vídeos da mostra possuem, conforme aponta Dumans, é mais importante do que a instituicional. “Mas não existe uma diferença apenas institucional, há o uso de materiais que aparecem de uma outra maneira”. Exemplo dessa relação, aponta Dumans, é o vídeo de Susana Bastos que apresenta um movimento de umas pernas que são esculturas. Outra questão importante que marca a relação entre o vídeo e as artes plásticas é a instalação. “O vídeo não pode se restringir ao dispositivo”, disse Dumans. “Esses trabalhos podem ser analisados enquanto vídeos, que tem uma vida própria quando exibidos em uma sala de cinema, como nessa mostra”. Dumans completou que é importante ver os trabalhos nesse formato, já que normalmente eles são exibidos em instalações ou exposições que permitem ao público ver a obra de forma fragmentada. “É um privilégio ver a obra na duração concebida pelo artista”, disse.

Se o espaço físico das galerias e das instalações é um aspecto importante, Dumans afirma que o recorte da mostra buscou apontar obras que trabalham com o espaço físico da imagem. “Mas não são todos os vídeos que evidenciam esse trabalho”, pontuou. “De que forma é possível ocupar o espaço físico do quadro? O quadro seleciona o que a gente vê e esses trabalhos trazem à tona aquilo que esta fora da imagem”. Em ”Saint Emilion” de Ilan Waisberg, Dumans entende que a obra apresenta uma tensão permanente entre aquilo que se vê e o que não é visto. A interferência do extra-campo também é algo marcante em outra obra para o curador, o já citado vídeo de Susana Bastos “Where are you going?”. “Em Buraco Negro, há uma certa performance, as personagens estão fora do quadro e o que a imagem mostra são os vestígios dessa atuação”, disse Dumans a respeito de “Buraco Negro” de Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado.

“Objetos do Desejo”, de Marco Paulo Rolla, é para Dumans um trabalho que traz o extra-campo para dentro da imagem. “Temos acesso ao que acontece na ação apenas por meio do som, já que não vemos o artista que se esconde no meio dos objetos”. “Traslado”, de Sara Ramo, é mais uma relação entre o visível e o invisível. “Tem alguma coisa que o quadro não deixa a gente ver”, disse Dumans. “É um vídeo que explora os fundos falsos e os buracos da imagem”.

Confira no post abaixo o ensaio de João Dumans produzido especialmente para a mostra “No Jogo da imagem” e que trata mais detidamente sobre a sua opção curatorial e sobre cada um dos vídeos.

Nove vídeos no jogo da imagem
Por João Dumans*

Em 1976, a artista Regina Silveira, engajada naquelas que eram ainda as primeiras experiências da videoarte brasileira, realiza um pequeno filme com pouco mais de dois minutos chamado Campo. Com o dedo indicador, margeando as quatro linhas do quadro, a artista percorre uma superfície plana registrada pela imagem, como se buscasse delimitar seu campo visual. Ao mesmo tempo em que aventura-se por esse novo espaço enquadrado pela tela, descobrindo seus contornos, sua aspereza, o movimento delicado da artista parece por vezes querer dizer “então aqui está, é isso: minha mão e a imagem”. Dupla descoberta sob o signo da qual o vídeo se fará presente na trajetória da arte brasileira: de um lado, a revelação de si mesmo, do próprio corpo, sua solidão em frente à câmera, sua plasticidade e resistência, seus limites, explorados exaustiva e mesmo violentamente. De outro, a descoberta de um novo meio, um novo suporte, ele também profundamente maleável, suscetível a todo tipo de riscos, de transformações e passagens.

Atualmente, em meio aos vários caminhos percorridos pelo vídeo nas últimas décadas, e em meio às inúmeras teorizações a respeito de sua natureza, ainda encontramos algo dessa curiosidade inicial – aventura solitária no quadrado branco – nas experiências de boa parte dos artistas que dele se valem em seus trabalhos. Para além da mídia e de suas especificidades técnicas, mas ainda assim graças a elas, o vídeo parece ter nos legado uma outra forma de se fazer e de se pensar as imagens. Mais do que um suporte, uma situação. Implicação imediata do artista, seu corpo, sua fala, sua idéia, seu olhar. De alguma forma, é essa urgência da criação - simplicidade de meios, de princípios - que marca o recorte dos trabalhos escolhidos para esta mostra. Outra característica diz respeito ao contexto de produção ao qual pertencem: contexto, um tanto vago e discutível, das artes plásticas, ou da arte contemporânea, o que evidencia simplesmente que os filmes apresentados dialogam constantemente com outras práticas e materiais. O dispositivo mesmo de exibição e circulação desses trabalhos - a “exposição” - revela em parte a natureza desse diálogo, já que a maioria deles foram apresentados pela primeira vez em conjunto com instalações, esculturas, pinturas, desenhos, fotos, etc.

Mas que “campo” é esse que Regina Silveira desenha com a ponta dos dedos na curta duração de seu filme? Em primeiro lugar, como já foi dito, o “campo visual”, que de forma um tanto grosseira pode ser definido como o espaço limite do quadro, demarcação primeira de tudo aquilo pertence ou pode vir a pertencer à imagem. Enquanto resultado do enquadramento, o campo define aquilo que é e aquilo que não é visto pela câmera. No cinema, a noção de campo está ligada de maneira decisiva à impressão de realidade causada pela imagem do filme. Contudo, há um outro sentido que poderia ser atribuído a este “campo”, se pensarmos que muitas vezes a “impressão de realidade” é justamente aquilo que vai ser colocado em questão. O campo pode ser, simplesmente, numa acepção mais banal do termo, o espaço no qual se desenrola um jogo. Nesse caso, mais do que um “duplo” do mundo, a imagem seria esse lugar capaz de acolher idéias, embates e invenções poéticas que redefinem a toda hora o seu papel e a sua natureza. A menção ao jogo não remete necessariamente a sua concepção usual, com a presença de jogadores, regras e a intervenção mais ou menos determinante do acaso. Aqui, o jogo é tudo aquilo que perturba a ordem do mundo e das imagens.

Algumas das questões, portanto, que se colocam a partir desse recorte são as seguintes: que tipos de jogos consigo mesma a imagem é capaz de abrigar? Como as proposições a princípio simples destes trabalhos podem subverter nossas expectativas em relação a ela? Que “foras-de-campo” estas imagens convidam a habitar o quadro? Que relações, poéticas, lúdicas ou críticas podem ser estabelecidas nesse espaço de idéias, performances e olhares? Na verdade, são questões que não se dirigem ao conjunto de filmes como um todo, até porque são bastante distintos entre si, mas a cada um deles em particular.

O dentro, o fora e os fundos falsos

Dizíamos que o “campo visual”, enquanto resultado do enquadramento, define aquilo que é e aquilo que não é visto pela câmera. Define também, como conseqüência imediata, aquilo que o espectador vê ou não. Ao menos em parte, podemos dizer que o encantamento que as imagens em movimento nos causam provém desse jogo de ocultamentos e visibilidades – somos conduzidos por aquilo que vemos e seduzidos pelo que ainda não nos foi dado ver.

Na pequena caixa de música que é Where are you going? (2008), de Susana Bastos, estamos a meio caminho dessa ilusão. Duas pernas finas, esculpidas em bronze, passeiam pelo quadro, ora ensaiando os passos de uma dança graciosa e desajeitada, ora em busca de um equilíbrio precário com a superfície do chão. Como nos velhos espetáculos de marionetes, as pernas são conduzidas por dois fios presos às suas extremidades, responsáveis por dar vida e movimento às esculturas. Vez ou outra, esse mecanismo que supostamente deveria estar fora da imagem se revela no quadro, e é a própria ilusão do movimento que se desequilibra. Logo, as pernas estão de pé outra vez, retomam seus passos desajeitados que ocultam ainda uma outra ilusão - a de serem idênticas (duas pernas esquerdas, gauches). Ao tocarem-se, as duas esculturas produzem elas mesmas a trilha sonora que anima seu movimento, como numa caixa de música (aqui, imprevisível em seu percurso) onde o fim da dança corresponde necessariamente ao fim da melodia. Em contraste com outras obras da artista, que trabalham o aprisionamento de esculturas de bronze similares, em diferentes escalas e com maior carga “dramática”, o vídeo investe no caráter lúdico e poético que a animação, desde seus primórdios, empresta com seus truques aos pequenos materiais a que dá vida.

A descoberta e redefinição constantes desse princípio de vida que anima os objetos ocupam o centro do trabalho de Sara Ramo, que participa da mostra com o vídeo Traslado (2008). Nele, a artista desfaz uma espécie de mala sem fundo (ou o fundo é o mundo?) que parece constituir o inventário de uma longa viagem. Aos poucos, o espaço vai sendo tomado por uma infinidade de coisas, e nos damos conta de que o importante não é tanto de onde elas vem (de que viagem, ou de que fundo) mas que simplesmente estão ali, acumuladas umas sobre as outras para, logo em seguida, serem deixadas para trás – desfazer a mala não como condição de chegada, e sim, de partida (de preferência, partir sem mala, ou dentro dela, tanto faz). Assim como em outros trabalhos, Sara descobre aqui esses estranhos fundos falsos da imagem e do mundo (alçapões, espelhos, gavetas, portas secretas) onde as coisas se escondem (como na série fotográfica Como aprender o que acontece na normalidade das coisas - 2002/2006), se multiplicam (como na instalação Uma e outra vez lá, mesmo que aqui - 2005) ou por onde se infiltram em outros espaços (como no O jardim das coisas do sótão - 2004). O resultado desse trânsito revela sempre uma outra face dos objetos, iluminados pela banalidade dos pequenos deslocamentos de que são vítimas.

Em Objetos do Desejo (1999), de forma semelhante, Marco Paulo Rolla habita o interior de uma pilha de móveis repleta de atalhos e passagens secretas, embora vejamos apenas os deslocamentos exteriores do artista por entre um cômodo e outro dessa casa muito pouco usual. Reiteradamente rejeitado pela pilha de objetos e por suas partes, o corpo é obrigado a se acomodar a cada hora a uma nova situação, espremendo-se entre três armários, um frigobar, uma mesa e um sofá. Os caminhos traçados dentro desse labirinto permanecem inacessíveis ao espectador, sugerindo uma espécie de “fora-de-campo” dentro da própria imagem. No jogo entre o visível e o invisível, entre os trabalhosos deslocamentos interiores e as passagens exteriores, o registro dessa performance acaba flertando com gêneros tão distintos quanto a comédia e o suspense, já que nunca sabemos por onde o corpo pode entrar ou sair. Por vezes, ele parece obrigado a se adaptar aos desígnios dessa massa de móveis, o que acaba invertendo a lógica de pertencimentos sugerida pelo título – ou seja, não são tanto os móveis os objetos do desejo, mas o próprio corpo, que passa a pertencer a eles. Numa chave mais contemplativa, sem abandonar o confrontamento lúdico com espaços e materiais os mais diversos, a idéia de incorporação física surgirá em trabalhos posteriores do artista, como na série de vídeos Paisagens, em que o corpo se projeta sobre grandes áreas abertas (uma praia, uma floresta, uma montanha) para, em seguida, ser absorvido por elas.

Ainda entre os vídeos que trabalham as relações entre o visível e o invisível, entre o campo visual e o extra-campo da imagem, está Saint Emilion (2009), de Ilan Waisberg. De forma distinta dos demais, o vídeo em questão não surge de uma proposição direta do artista, e tampouco vale-se de sua presença imediata no interior do quadro. Pelo contrário: é a distancia imposta pela contemplação e pelo enquadramento da imagem que fazem oscilar o sentido de uma cena a princípio simples, captada diretamente do “real”. A ação central do vídeo, que em qualquer lugar poderia ser resumida simplesmente como “três homens puxam um corda”, transforma-se aqui em algo do tipo “três homens puxam uma linha branca que se desprende da parte superior do quadro”. É exatamente entre essas duas possíveis definições que se descortina o estranhamento causado pelo filme. Por um lado, o trabalho cotidiano, por outro, um esforço que resulta inútil e que redefine em sua duração a natureza da imagem. Como em outros trabalhos do artista, o que está em jogo aqui é este pequeno ajuste de contas com a nossa própria percepção, muito afeita aos consensos que regem formas já estabelecidas de ver o mundo. Transformações operadas em materiais eletrônicos de consumo popular (como na série Gambiônicos) e recortes de situações banais do cotidiano (tendo como pano de fundo a geografia artificial dos prédios e condomínios mais “modernos”) revelam sempre novas formas de visibilidade para esses objetos e espaços.

Controle, descontrole e outros jogos

As aproximações e apropriações do universo cotidiano – de suas práticas, rotinas, imagens, materiais – redefinem muitas vezes a forma como o percebemos, ao mesmo tempo em que criam outros desenhos de mundo dentro de uma realidade que temos como certa. Aqui, o controle das variáveis em jogo pelos artistas é apenas parcial, e seus gestos abrem brechas para que formas de desajuste e descontrole se infiltrem no campo da imagem.

As performances e ações de Cinthia Marcelle, por exemplo, nos colocam com freqüência diante de um impasse, tendo em vista a maneira como seus trabalhos se inserem no universo cotidiano. Ao mesmo tempo em ensaiam uma aproximação do mundo, numa assimilação dos mecanismos e práticas que regem o funcionamento das coisas, eles marcam sempre uma espécie de incompatibilidade entre as proposições da artista e o circuito no qual sua ação se insere. No vídeo Unus Mundus - Confronto (2005), a performance de malabaristas com fogo no sinal, já tão bem incorporada ao ritmo de vida das grandes cidades, transforma-se num espetáculo que rompe com sua lógica habitual, e acaba por constituir uma verdadeira frente de embate com o trânsito, signo mais que evidente da indiferença contemporânea. Nos demais trabalhos da série Unus Mundus, por meio de multiplicações e simultaneidades, a artista desenha campos de contato com a vida cotidiana, perturbada pela infiltração de novos elementos nos jogos que definem a sua ordem. Se a dimensão pública dessas intervenções é imprescindível para reiterar seu caráter político, o outro trabalho da artista na sessão, em parceria com Tiago Mata Machado, leva o jogo das afirmações e diferenças para um outra esfera. Buraco Negro (2008) é, antes de qualquer coisa, um filme sobre a construção da intimidade. Sobre uma intimidade primeira, desajeitada e como que recém descoberta, e sobre uma intimidade ancestral, mítica, quando os suspiros de duas forças desconhecidas (mas já homem e mulher) sopram mapas provisórios sobre o fundo negro do universo.

Bem menos românticos são os mapas desenhados pelas numerosas ferramentas tecnológicas que invadem nosso cotidiano. Em Tokyo (2008), de Rodrigo Matheus, um zoom out no Google Earth revela pouco a pouco os ícones que identificam diferentes rotas, serviços e informações relativos à cidade. À medida que a distância aumenta, os ícones se acumulam, até tomarem por completo a superfície do território mapeado. Num dado momento, essa massa informe de dados parece se descontrolar, definindo provisoriamente sua lógica de ocupação do espaço (a pequena desordem é liderada pelos ícones da “DG – Digital Globe”, maior fornecedora comercial do mundo de imagens por satélite e pelos do “You Tube”, que mapeiam os usuários e seus respectivos vídeos no serviço). A apropriação e reinvenção de formas industriais, dispositivos eletrônicos e sistemas de segurança e controle são uma constante no trabalho do artista. Juntas, as subversões operadas nesses diversos níveis revelam novos universos, espelhados na ficção gratuita de imagens e tecnologias que constitui o nosso tempo.

Em Quarta-Feira de Cinzas/Epílogo (2006) Rivane Neuenschwander, em parceria com Cao Guimarães, registra um exército de formigas que carregam as sobras das folias de carnaval. O penoso exercício acaba se convertendo num curioso espetáculo, quando confetes coloridos, recobertos previamente de açúcar, começam a desfilar por entre os galhos e folhas secas da mata – imagem mais que emblemática, diga-se de passagem, do feriado que dá titulo ao filme, espremido entre a alegria passageira dos dias de festa e o imperativo do trabalho que se anuncia. Com incursões freqüentes ao mundo dos pequenos seres domésticos, a artista passou a gerenciar uma extensa rede de colaboradores, responsáveis em grande parte pela execução de seus trabalhos. São as formigas que devoram em ritmo frenético o mapa mundi feito de mel em Contingente (2008), assim como são as lesmas que conformam as cartografias imprevisíveis de Carta Faminta (2000). Em jogos de trocas e acasos sugeridos, Rivane parece refletir sobre a passagem, tanto no tempo, quanto no espaço, dos seres e das coisas. É sobre os rastros dessas passagens que seu trabalho nos convida a ver, ao fim e ao cabo, as evidências da própria vida.

No último trabalho da sessão, o coletivo “Selvagens Nocivos” faz da imagem o espaço de contato direto com o espectador, numa espécie de vídeo-manifesto caseiro, em que fragmentos de inscrições reveladas pelos artistas confundem-se com situações rotineiras encenadas por eles. O sentido dos enunciados permanece suspenso nessa via de comunicação precária mediada pela câmera. Experimento que nos remete àquelas primeiras aventuras do vídeo, onde uma imagem recém descoberta, turva e cheia de ruídos, expressava a urgência do discurso, do pensamento, da política e da poesia – da arte, enfim.

* João Dumans é pesquisador de cinema. Foi programador do Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, curador do Cineclube Curta Circuito, e curador assistente da Mostravídeo Itaú Cultural. Participou de comissões de seleção e programação de festivais como o forum.doc.bh e o Festival Internacional de Curtas de BH.

segunda-feira, junho 29, 2009

Roberto Bellini: visibilidades desviadas

“Tento trabalhar muito com a imagem e não o que está acontecendo na imagem”. Dessa forma Roberto Bellini resumiu a sua forma de trabalho, em conversa com o público presente na mostra “Visibilidades desviadas”, que exibiu seis trabalhos dele no Cine Humberto Mauro no Palácio das Artes. Essa maneira de produzir imagens, que é um aspecto forte do seu trabalho, Bellini credita à sua formação em artes plásticas. “Pela minha formação, eu tendo a trabalhar outras conexões da imagem”, disse.

Bellini também considera preponderante para os seus vídeos o trabalho de edição. “A edição é onde o trabalho acontece”. O diretor também agradeceu todos os colaboradores de seus vídeos. “A sensibilidade que existe na edição é muito por causa da Clarissa Campolina, por exemplo”. Bellini comentou que os vídeos exibidos na mostra, que contemplam três anos da sua carreira, apresentam uma mudança do aparato técnico e de conhecimento teórico colocados em prática na realização dos vídeos. “A sensibilidade vai se formatando”.

Confira, abaixo, as principais declarações do artista:

Acéphale, instalações e motéis
“Em Acéphale eu e Suzana Bastos tentávamos entrar no improviso, de pagar o quarto de motel e tentar ali criar uma situação. Tentamos criar algumas relações com coisas orgânicas, com o corpo. A edição do material é de certa forma um resumo do que foi a instalação. Instalação depende muito do dia, se tem luz, se tem muita gente, do conjunto de trabalhos que fazem parte da exposição.... Em uma sala de cinema, você conta com a dedicação exclusiva do público. Na instalação você não tem como prever muito as coisas.”

Cordis, instinto e edição
“Em Cordis a morte é uma coisa muito forte no meio de coisas que são muito sutis. Eu quis causar esse impacto. Muitas escolhas nesse vídeo foram de instinto, por isso eu valorizo a edição, que é o lugar onde eu retomo o controle. Às vezes tirar uma informação na edição, meio segundo, é suficiente para que a imagem tenha o efeito e o impacto que eu busco.”

Planejamento
“Cada vez mais eu quero saber menos do que eu quero dizer, aprecio mais o encontro com o lugar ou situação que vou filmar. Eu planejo muito pouco. Tudo o que você não planeja é mais interessante. Eu sei mais o que eu não quero do que o que eu quero. Eu fui parando de querer inventar, eu gosto de sair, encontrar algo e ver como vou lidar com a situação.”

Desenho
“Eu perdi um pouco o interesse de criar dessa maneira, apesar de ainda gostar muito de desenhar, pois isso implica um certo gasto de tempo e de planejamento”.

Visibilidades desviadas: entrevista com Roberto Bellini
Por Eduardo de Jesus

Os trabalhos em vídeo de Roberto Bellini assumem uma vertente bastante interessante dentro da produção artística contemporânea, ao associarem uma nítida atitude crítica e política em relação ao contexto atual com uma rigorosa construção formal que dialoga, de forma tensa, com a tradição da arte e do próprio ambiente da imagem em movimento. Podemos perceber isso na sequência de trabalhos que será apresentada no Imagem Pensamento.


Em “Opaco” (2006) a sombra de quem filma aparece na imagem, aliás, parece que a função da imagem nesse trabalho é revelar essa sombra-imagem, colocando-a como uma silhueta que se incrustra e, de alguma forma, marca o espaço. Assim como Ana Mendieta incrustava seu corpo nas paisagens mais diversas, deixando a marca de sua presença, que por ali passou, Bellini também faz com que a imagem marque essa presença que se registra. Aos poucos a sombra torna-se uma elaboração formal através das diferentes distâncias entre o foco de luz e a sombra. A imagem que vemos projetada deforma a representação do corpo e assume inusitadas composições formais dentro do quadro.

O vídeo serve como dispositivo para a elaboração de um desvio das visibilidades. Bellini nos coloca em contato com aquilo que, normalmente, pelo menos em determinados registros da imagem em movimento, se configura como um defeito, mas que aqui torna-se a própria imagem fazendo uma interessante aproximação com as origens do cinema no teatro de sombras.


Esse desvio das visibilidades também marca “Escuro” (2006). Neste vídeo não podemos ver nada, a não ser algumas imagens iluminadas com um flash de uma máquina fotográfica. Muito rápido, o flash ilumina somente alguns trechos dessa caminhada pelo espaço (que parece uma casa) quase sem deixar que qualquer vestígio da imagem seja percebido. Somos desviados da imagem e colocados numa situação de apreensão em relação ao que precariamente podemos ver e aquilo que ouvimos. As imagens são percebidas no ritmo veloz do flash de forma muito fugaz, quase inapreensível.


“Jardim invisível” (2008), premiado com o prêmio aquisição no XV Salão da Bahia do Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, também se estrutura em torno de uma forma bastante tensa de visibilidade. Mais uma vez, assim como em “Opaco” e “ Escuro”, a imagem é muito escura e revela de forma muito sutil os jardins de um subúrbio americano em plena noite. Se nos dois primeiros trabalhos era uma composição formal que estruturava os vídeos, em “Jardim invisível”, além disso, há uma nítida aproximação política e crítica em torno dos modos de experimentar esses espaços privados que se tornam esvaziados pelos modos de gestão do espaço e seus territórios. Se a beleza das imagens nos encanta, guiados pela citação das cidades invisíveis de Calvino que aparece logo no início do vídeo, as questões políticas e críticas destes espaços isolados e privados ganham visibilidade. Assim, nos colocamos no entroncamento dessas linhas de força, entre a beleza e quietude dessas images, que nos são reveladas em suaves movimentos de câmera, e a nítida situação de tensão que essas apropriações e construções do espaço, típicas dos jogos de poder cotemporâneos, nos mostram.


Em “Notas de uma encenação” (2008) a aparente simplicidade formal das imagens parece nos mostrar uma simples encenação de caráter histórico e memorialista de um massacre de soldados americanos pelo exército mexicano. No entanto, ao longo do vídeo vemos que, na verdade, tudo aquilo encobre uma enorme tensão política em torno de territórios e identidades. Tudo é sutil e pode até mesmo parecer inofensivo, mas ao levarmos em conta a situação das fronteiras, as relações entre os dois países e o papel que desempenham, cada um a seu modo, no contexto global, o vídeo ganha outros sentidos que contrastam fortemente com a suposta inocência das imagens.


“Acéphale” e “Cordis” são trabalhos mais novos, ambos de 2009, que serão lançados no Imagem pensamento. “a”, desenvolvido em parceria com Suzana Bastos, foi exibido primeiramente na instalação homônima na exposição “Simbios” (2008), realizada na Casa do Baile, em Belo Horizonte e posteriormente como material para live-images, junto com outros artistas da mesma exposição, no “Simbios Remix”(2009), realizado no espaço 104, da mesma cidade. “Cordis” é o trabalho mais novo que integrará a exposição que Bellini realizará brevemente no Centro Cultural São Paulo, entre os dias 22 de agosto e 02 de novembro, junto com outros trabalhos.


Na entrevista que segue abaixo Roberto Bellini nos fala dos trabalhos mais recentes, de sua visão de territórios e espaços, noção frequente em seus trabalhos, e de sua formação.


01. A questão do território, da paisagem e do espaço aparece com bastante força na construção de algumas de suas obras. Como essas preocupações começaram a surgir em seu trabalho e como elas são tratadas em cada um desses vídeos?


Ligar a câmera, em muitos momentos, é um convite a contemplação. Desde meus primeiros vídeos esse confronto com a paisagem que é o olhar definiu o rumo de cada um dos meus trabalhos. Talvez por ter começado a trabalhar com vídeo em outro país, me concentrei no resultado desses encontros. Cada trabalho dialoga de uma maneira diferente com o espaço e a visão, em alguns como “Opaco” e “Escuro”, essa conversa gira em torno da fisicalidade da visão, sua lógica e sua influência sobre a paisagem. Já nos outros trabalhos começo a lidar com narrativas latentes que surgem desses espaços, juntando sensações, personagens e memórias, que se encontram decantadas em determinados lugares.

02. Você tem uma formação em desenho e os seus primeiros trabalhos são fortemente influenciados por isso. Qual a influência desse repertório nos seus trabalhos mais recentes?


Com o desenho me acostumei a comunicar pela visualidade. No vídeo as vezes temos a tendência de ignorar a imagem, que pode ser apenas uma conseqüência de uma ação ou situação, e que está presente apenas para nos levar ao final de um discurso. Eu tento não fazer isso, eu acredito que as imagens comunicam e que não precisam de tradução. Acho que essa confiança na imagem e no olhar são frutos diretos do meu envolvimento com o desenho.

03. As situações de visibilidade e de opacidade aparecem constantemente nas suas obras. Como você entende o seu papel como artista nessa conflituosa negociação de visibilidade e invisibilidade que marca a contemporaneidade?
Eu tento lidar com o espaço em minha volta, o que vejo, mas procuro dentro desse contexto trabalhar com um fluxo de informação mais lento do que estamos acostumados no dia a dia. Muitas vezes o que chamo de invisível no meu trabalho é apenas uma desaceleração, que possibilita uma percepção de outras camadas de significação numa paisagem.

04. “Acéphale” produzido com Susana Bastos e Paulo Beto foi apresentado como instalação na exposição coletiva “Simbios” e depois num ambiente de festa, como VJ, no “Simbios Remix”. Aqui, no Imagem Pensamento, como uma obra autônoma em single channel. O que ocorre nessas passagens? Como manter a “integridade” da obra mudando as formas de exibição e fruição?

No caso de Acéphale, que foi um trabalho feito em parceria, ela já foi concebido vislumbrando essas possibilidades de re-organização. O próprio projeto da simBIO que foi quem possibilitou esse trabalho partia desse princípio. Eu acho que cada manifestação dessas, mesmo partindo de um mesmo trabalho, se torna uma outra coisa. Você acaba tendo prioridades diferentes em cada uma. No casa específico do “Acéphale” por exemplo a edição de um vídeo linear tem muitas responsabilidades que a edição da instalação não tem, pelo tempo que o espectador se dedica a cada proposta, a relação com o espaço ou a sala escura...
Mas para mim existe um outro fator mais mundano que tem igual importância, que é a falta de oportunidades de expor trabalhos de vídeo instalação, com o devido equipamento e condições técnicas. Com isso um trabalho que teve um investimento intenso financeiro e criativo pode ser mostrado apenas uma vez. Essa maleabilidade se torna essencial para garantir uma sobrevida ao trabalho, respeitando as diferenças entre os formatos e situações, e é claro que nem todo trabalho se presta a essas adaptações.

05. Neste seu novo trabalho, “Cordis”, qual foi o ponto de partida para sua construção?

Esse trabalho foi fruto de uma temporada de 3 semanas em Cordisburgo, MG. Estava com o cineasta Sérgio Borges, filmando para um trabalho de vídeo cenário para uma peça de teatro. Durante essas filmagens muita coisa foi utilizada e muitas outras ficaram de fora. O vídeo “Cordis” surgiu desse material, e dessa vivência intensa daquele lugar, a relação com o campo, com os animais e ligação espiritual e física entre esses pontos.

06. Você teve o projeto “Fluxo submerso” aprovado no Filme em Minas. De que trata esse no projeto e quando será lançado?

O “Fluxo Submerso” ainda está numa fase bem inicial de planejamento e concepção, mas posso adiantar que se trata da produção de uma vídeo-instalação que registra a hidrografia submersa da cidade de Belo Horizonte. Os rios e córregos da cidade, hoje cobertos por pistas largas de tráfego. A idéia é torná-los visíveis novamente, emergindo de sua escuridão para o imaginário público.

quinta-feira, junho 25, 2009

Contemplação
Coluna de Gracie Santos, publicada na edição de 25/06/09 do jornal Estado de Minas